sábado, 12 de julho de 2008

Era escrava da dor que cultivava, se auto-infligindo em ritos as piores provações . Bulímica,anoréxica, esquálida , tão magra que os familiares não suportavam sua figura . Vivia no quarto trancada . Restos de comida e sacos de vômito escondidos no fundo das gavetas e armários. A enfermeira contratada havia se demitido naquela manhã, o soro estava jogado no chão.Sentia um enorme prazer em exibir as marcas de gilete que marcavam sua inúmeras internações. Eram tantas que os dois braços inteiros já não bastavam. Após entupir a sonda gástrica que a alimentava, ouviu passos suaves próximos à sua cama. Um vulto diáfano envolto em véus escuros a observava. A tão ansiada visita da morte finalmente se apresentava.Apurou a visão, o rosto era familiar mas tão apagado, quase não via as feições e muito menos o que o fantasma murmurava...apesar da fraqueza, tentou enxergar alguma coisa e mais uma vez reconheceu fragmentos de um expectro débil e quase incolor. Sentiu o corpo tremer em espasmos, as articulações doíam , as vísceras ressecadas ardiam em pontadas, mal conseguia respirar...Mais uma vez a figura espectral se aproximou e desta vez uma luz muito fraca iluminou a face cadavérica. Horrorizada a menina viu seu próprio rosto, a boca muito aberta tentando emitir algum som, os dentes haviam caído , ossinhos no lugar das mãos tentavam toca-la . Ela gritou, gritou de horror diante do espelho da Morte. Seu reflexo seria o castigo e sua única companhia na longa travessia desejada. No último instante se arrependeu da existência inútil mas era tarde demais.No vale dos suicidas almas gemiam em desespero, abutres aguardavam a carniça, o ar pesado , denso, nenhum rosto amigável nem mão estendida, apenas dor e lamentos. Caminhando por estreitas vielas tropeçava em meninas e meninos jogados no chão, sem forças, derrotados, esperando, não falavam nem se moviam. Alguns estavam tão desfigurados que nem pareciam serem humanos, eram restos distorcidos, mutilados, fiapos de carne ...como ela, só tinham o vazio e a desesperança.Uma menina vinha caminhando apressada e com ela uma legião de crianças . Quando estavam próximos ela percebeu que não eram crianças e sim adultos e adolescentes descarnados numa procissão de horrores sem fim. Eles vinham busca-la , eram seu comitê de boas vindas. Reconheceu antigas amigas de hospitais, se abraçaram, rindo e chorando, entre os seus o lugar já não parecia tão inóspito. Sorriu .Estava em casa.
Texto: Giselle Sato

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