quinta-feira, 24 de julho de 2008


Palavras de molho
Pus de molho as letras
Uma mão cheia delas
Vários abecedários
E muitas salteadasVogais, bastantes.
Pu-las a refrescar em água friaUns cubos de gelo derretidos antes
Três graus bem medidosEstão a demolhar como o fiel amigo
Mas são outras que as do excesso salino
As razõesFicam-se elas por coisas da almaIndefinições
Demolho-as uns tantos dias
Mudo a águaAguardo que se entrelacem
Pês com ós, és e emes agarrados a ás
Tantas formas que nem sei imaginar
Se o soubera nem precisava demolhar
As letrasSoltariam sua presença
Em presençaEm contados, em histórias, em narrar
AssimFicam ali, já disse
Mas temo que seja demais deixá-las a medrar
Um dia ou maisTemo que rebentem em raízes
Deitem folhas, flores
Que saiam da água por aí em fila,Aos grupos
Palavras dependuradas em árvores
Um susto que eu nem saberia
Nem pela cabeça passariaO que elas iam por aí contar
Mais vale que as refresque um pouco
O tempo apenas de que venham
Como aos ovosAcima as que, eventualmente
Estejam chocasE se forem todasPois se forem
Nunca mais as usoNunca mais escrevo uma linha
Por enquanto, estão ali fresquinhas
Maria de Fátima
Texto vencedor da MA McManoel's

Sopa

Pôs na panela, a ferver, um bom pedaço de músculo. Com amor, minha filha, a comida quer que se a cozinhe com amor. As palavras da avó, sempre em seus ouvidos. Juntou, com amor, batatas, mandioquinhas e cenouras, uma cebola, uma fatia grossa de paio e outra de toucinho, um bocado de salsa e, claro, um fio de azeite. Só use Português, menina, que os outros não prestam. O cheiro da sopa fervente invadia a casa e a alma. Lembranças boas, saudades da infância, do colo quente e perfumado dos avós. Os pratos esperavamna mesa, preparados: no fundo, uma fatia de pão - uma côdea bem servida – e sobre ela, um pouco de vinho tinto. Por último, a sopa fumegante.
- José, vem jantar, menino! – soava bem chamar o filho pelo mesmo nome do avô.
Uma refeição simples, numa cozinha qualquer, aquecida pelo fogão e pela proximidade. Sentia-se, ali, a representante de gerações e gerações de mulheres, felizes por terem cozido suas sopas e conduzido suas famílias. Enviou um beijinho para o ar. A avó havia de recebê-lo!

Marcia Szajnbok

Segundo lugar no McManoel's


Roda-Viva

Três amigas, três sonhos, Maria, Margarida e Marlene. Maria andava sempre bem vestida, era orgulhosa de sua beleza. Já Margarida vivia entre as flores. Sabia dizer o aroma de todas de olhos fechados. Marlene era apaixonada pelos versos e, com um livro de poesias, sempre estava distraída a caminhar pelos parques da cidade. Maria casou com um Florista, Margarida com um Poeta e Marlene com um Alfaiate. As razões do amor nem sempre são evidentes. Maria invejava Marlene, que invejava Margarida, que invejava Maria. Na roda-viva elas bailavam ao sabor do destino.
Alian Moroz
Terceiro colocado do McManoel's

O Papa-Jornais

Na minha rua, existe uma personagem singular – um comedor de jornais. Devora todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas do café, quer os que o vento empurra rua fora. Uma vez por outra, até já o vi debruçado pela abertura do Papelão.
Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das de véspera, que já todos esqueceram. Por tudo isso, é motivo de falatório na rua. Estranham-lhe a bizarria – dizem.
A mulher, que salga sempre a comida, inveja-lhe a memória. O rapaz, que sonha com pescarias no tanque do fontanário, diz que ele assusta os peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas, que plantam jacintos nos charcos da calçada, criticam-lhe a voracidade. O oriental, de cujo livro saem, por vezes, pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.
Todo este mal-estar desapareceu, esta manhã, inesperadamente. Quando saí à rua, para comprar pevides de melão, as conversas giravam à volta do Papa-jornais. Todos asseveravam que era um bom homem e gabavam, até, a utilidade da sua preferência gastronómica, para o asseio do bairro. E lamentavam-no com lágrimas nos olhos. Parece que houve uma distribuição maciça de jornais gratuitos e ele morreu de indigestão.

Joaquim Bispo


Texto vencedor da MA para o Restaurante do Mcanoel's


sexta-feira, 18 de julho de 2008

A extraordinária popularidade da psicanálise poderá, talvez, ser explicada, em parte, pela sua ousada concepção da motivação humana, ao colocar o sexo, - objeto natural de interesse das pessoas e também sua principal fonte de felicidade -, como único e poderoso móvel do comportamento humano. O mundo civilizado, pouco antes chocado com a tese evolucionista de que o homem descendia dos chimpanzés, já não se surpreendia com a tese de que o sexo dominava o inconsciente e estava subjacente a todos os interesses humanos. A novidade foi recebida com divertido espanto e prazerosa excitação. Em que pese os detalhes picarescos de muitas narrativas clínicas, a abordagem do sexo sob um aspecto científico, em plena Era Vitoriana, representou uma sublimação (para usar um conceito da própria psicanálise) que permitiu que a sexualidade fosse, sem restrições morais, discutida em todos os ambientes, inclusive nos conventos. Essa permeabilidade subjetiva confundiu-se com profundidade científica, e a teoria foi levada a aplicação em todos os campos das relações sociais, nas artes, na educação, na religião, em análises biográficas, etc. Porém, a questão da motivação sexual foi causa de se afastarem do círculo de Freud aqueles que haviam inicialmente se entusiasmado pela psicanálise como método de análise do inconsciente, entre eles Carl Jung, Otto Rank, e Alfred Adler que decidiram por outras teses, e fundaram suas próprias correntes psicanalíticas. No seu todo, a psicanálise foi fortemente contestada por outras correntes, inclusive a da fenomenologia, a do existencialismo, e a da logoterapia de Viktor Frank

Motivação. Para explicar o comportamento Freud desenvolve a teoria da motivação sexual (sobrevivência da espécie) e do instinto de conservação (sobrevivência individual). Mas todas as suas colocações giram em torno do sexo. A força que orienta o comportamento estaria no inconsciente e era o instinto sexual.

Caricatura sugerida pela amiga Morgana. Fã de carteirinha do nosso emblemático Sigmund Freud.

sábado, 12 de julho de 2008

Era escrava da dor que cultivava, se auto-infligindo em ritos as piores provações . Bulímica,anoréxica, esquálida , tão magra que os familiares não suportavam sua figura . Vivia no quarto trancada . Restos de comida e sacos de vômito escondidos no fundo das gavetas e armários. A enfermeira contratada havia se demitido naquela manhã, o soro estava jogado no chão.Sentia um enorme prazer em exibir as marcas de gilete que marcavam sua inúmeras internações. Eram tantas que os dois braços inteiros já não bastavam. Após entupir a sonda gástrica que a alimentava, ouviu passos suaves próximos à sua cama. Um vulto diáfano envolto em véus escuros a observava. A tão ansiada visita da morte finalmente se apresentava.Apurou a visão, o rosto era familiar mas tão apagado, quase não via as feições e muito menos o que o fantasma murmurava...apesar da fraqueza, tentou enxergar alguma coisa e mais uma vez reconheceu fragmentos de um expectro débil e quase incolor. Sentiu o corpo tremer em espasmos, as articulações doíam , as vísceras ressecadas ardiam em pontadas, mal conseguia respirar...Mais uma vez a figura espectral se aproximou e desta vez uma luz muito fraca iluminou a face cadavérica. Horrorizada a menina viu seu próprio rosto, a boca muito aberta tentando emitir algum som, os dentes haviam caído , ossinhos no lugar das mãos tentavam toca-la . Ela gritou, gritou de horror diante do espelho da Morte. Seu reflexo seria o castigo e sua única companhia na longa travessia desejada. No último instante se arrependeu da existência inútil mas era tarde demais.No vale dos suicidas almas gemiam em desespero, abutres aguardavam a carniça, o ar pesado , denso, nenhum rosto amigável nem mão estendida, apenas dor e lamentos. Caminhando por estreitas vielas tropeçava em meninas e meninos jogados no chão, sem forças, derrotados, esperando, não falavam nem se moviam. Alguns estavam tão desfigurados que nem pareciam serem humanos, eram restos distorcidos, mutilados, fiapos de carne ...como ela, só tinham o vazio e a desesperança.Uma menina vinha caminhando apressada e com ela uma legião de crianças . Quando estavam próximos ela percebeu que não eram crianças e sim adultos e adolescentes descarnados numa procissão de horrores sem fim. Eles vinham busca-la , eram seu comitê de boas vindas. Reconheceu antigas amigas de hospitais, se abraçaram, rindo e chorando, entre os seus o lugar já não parecia tão inóspito. Sorriu .Estava em casa.
Texto: Giselle Sato

sábado, 5 de julho de 2008

A velhice(Olavo Bilac)

Olha estas velhas árvores, mais belas Do que as árvores moças, mais amigas, Tanto mais belas quanto mais antigas, Vencedoras da idade e das procelas... O homem, a fera e o inseto, à sombra delas Vivem, livres da fome e de fadigas: E em seus galhos abrigam-se as cantigas E os amores das aves tagarelas. Não choremos, amigo, a mocidade! Envelheçamos rindo. Envelheçamos Como as árvores fortes envelhecem, Na glória de alegria e da bondade, Agasalhando os pássaros nos ramos, Dando sombra e consolo aos que padecem!

Poema enviado pela minha amiga Vamp.



quarta-feira, 2 de julho de 2008


Não digas nada! Nem mesmo a verdade Há tanta suavidade em nada se dizer E tudo se entender - Tudo metade De sentir e de ver... Não digas nada Deixa esquecer Talvez que amanhã Em outra paisagem Digas que foi vã Toda essa viagem Até onde quis Ser quem me agrada... Mas ali fui feliz Não digas nada.
Texto de Fernando Pessoa enviado pela minha grande amiga e xará!